Como criamos o Eu Falso

Os pais utilizam, muitas vezes inconscientemente, variadas técnicas e tentativas nos seus objectivos de reprimir determinados pensamentos, sentimentos e comportamentos nos seus filhos. Por vezes avançam com pedidos muito directos: “os homens não choram!”, ou “mexer aí (‘aí’ referindo-se aos genitais) é feio!”, ou ainda “não voltes a dizer essas coisas!”

Podem ainda fazê-lo de maneira mais agressiva, como podemos observar numa loja quando a mãe ralha com a criança, ou dá umas palmadas ou bofetadas porque a criança mexe onde não deve.

Mas a maior parte das vezes os pais moldam a criança de maneiras subtis, num processo a que se chama invalidação – limitam-se simplesmente a não testemunhar um comportamento ou a mostrar agrado por algo que a criança diz. Por exemplo, se os pais não dão qualquer valor ao desenvolvimento intelectual, oferecem aos seus filhos brinquedos ou inscrevem-nos em actividades lúdicas, mas não lhes oferecem livros nem estimulam a leitura. Se acreditam que as mulheres devem ser sossegadas e femininas e os homens fortes e assertivos, só mostram apreço por comportamentos relacionados com o sexo da criança. Se o menino de 4 anos entra na sala com um enorme camião nos braços, podem afirmar algo como “que homem forte!”, mas se for uma menina a carregar o mesmo camião podem dizer “cuidado! Olha que podes magoar-te e sujar o teu lindo vestido!”

Contudo, a forma como os pais mais influenciam os seu filhos é através do exemplo. As crianças, instintivamente, observam as escolhas que os pais fazem, as liberdades e os prazeres que se permitem, os talentos que desenvolvem, as capacidades que ignoram, e as regras e valores que seguem. Tudo isto tem um efeito profundo nas crianças. O que as crianças vêem é: “É assim que nós vivemos. É assim que conseguimos sobreviver.” Esta socialização inicial é importante, independentemente de as crianças aceitarem os modelos dos pais ou de se revoltarem contra os mesmos.

A reacção de uma criança aos convencionalismos da sociedade segue um padrão bastante previsível. Inicialmente, a primeira resposta é esconder os comportamentos proibidos pelos pais. A criança tem pensamentos de raiva mas não os expressa. Prefere explorar o seu corpo na privacidade do seu quarto. Pode implicar com os irmãos mais novos quando os pais não estão presentes (ou abusar deles de muitas maneiras). Com o decorrer do tempo, a criança chega à conclusão que alguns dos pensamentos e sentimentos são tão inaceitáveis que deveriam ser simplesmente eliminados. Assim, constrói um pai imaginário que policie os seus pensamentos e acções, criando aquilo que muitos psicólogos referem como o superego. A partir daqui, sempre que a criança tem um pensamento proibido ou tem um comportamento inaceitável, irá experienciar uma dor causada pela ansiedade do superego. Esta experiência pode ser tão desagradável que a criança decide meter dentro de um saco alguns dos seus aspectos proibidos. Ou seja, reprime certos pensamentos e acções. O preço que paga por fazê-lo é a perda do ser total ou completo que é.

Para preencher o vazio criado, a criança cria um “Eu Falso”, uma estrutura psicológica que serve dois objectivos: irá camuflar as partes de si reprimidas e também protegê-la de mais danos.

Uma criança criada por uma mãe que reprime a sua sexualidade e é distante, por exemplo, poderá tornar-se no “homem duro”. A criança dirá a si mesmo: “Não quero saber se a minha mãe é distante e não me mostra afecto. Eu não preciso dessas lamechices. Eu desenrasco-me bem sem ajuda. E mais uma coisa: sexo é uma coisa suja!” Com o passar do tempo o menino irá aplicar esta resposta padrão a todas as situações. Independentemente de quem se queira aproximar dele, irá sempre criar a mesma barreira. Mais tarde, quando por fim consegue ultrapassar a sua relutância em relação aos relacionamentos humanos amorosos é muito provável que critique a sua companheira devido ao desejo desta de querer intimidade e um contacto sexual. “Porque raio queres tu tantos carinhos e mimos? E porque és tão obcecada com o sexo?! Isto não é normal!”

No entanto outra criança pode reagir à mesma mãe, distante e sexualmente reprimida, de maneira oposta. Exagerando os seus problemas na esperança de alguém a ajudar. “Coitado de mim! Estou ferido, os outros magoam-me continuamente! Preciso que alguém cuide de mim!”

Uma outra criança pode tornar-se gananciosa, tentando agarrar-se a cada pedaço de amor, comida e objecto que veja, na certeza que nunca haverá o suficiente.

Independentemente da natureza do Eu Falso, o seu propósito é sempre o mesmo: minimizar a dor de perder uma parte da criança original. O seu ser completo e divino.

Contudo, a determinada altura do desenvolvimento da criança, esta forma engenhosa de auto protecção torna-se na causa de mais danos, à medida que a criança é criticada por possuir estas características negativas. Os outros irão criticar o seu distanciamento e frieza, ou a sua atitude de ‘coitadinho’, ou o ser gordo ou ganancioso. Os que atacam esta criança não conseguem ver as feridas que ela tenta proteger, e não ficam muito entusiasmados pela maneira astuta com que o faz: tudo o que vêem é a sua natureza neurótica. É considerada inferior, menos que completa.

É aqui que a criança se sente numa encruzilhada. Por um lado tem que se agarrar aos aspectos de adaptação do seu carácter, porque servem um propósito útil, mas por outro lado não quer ser rejeitada. O que pode esta criança fazer? A solução é negar ou atacar a atitude dos que a criticam. “Eu não sou frio e distante!”, poderá dizer em auto-defesa, “na verdade sou forte e independente!”. Ou “eu não sou um coitadinho frágil, sou simplesmente muito sensível.”. Ou ainda “eu não sou ganancioso e egoísta, sou poupado e prudente!”. Por outras palavras, “Não é de mim que estão a falar. Vocês apenas estão a ver-me sob uma perspectiva negativa.”

Até certo ponto a criança tem razão. Os seus aspectos negativos não fazem parte da sua natureza original. São criados a partir da dor e tornam-se parte de uma identidade assumida, um “outro eu” que a ajuda a viver num mundo complexo e muitas vezes hostil. Isto não quer dizer, contudo, que ela não possui estes aspectos negativos. Haverá sempre um número de pessoas que afirmarão a sua existência. Mas para poder manter uma imagem positiva de si mesma, e aumentar as probabilidades de sobrevivência, ela terá que negar a sua existência.

Estes aspectos negados irão tornar-se aquilo a que se chama de “Eu Deserdado”, ou “Sombra”: aqueles aspectos do Eu Falso que são demasiado dolorosas para serem reconhecidos.

Vamos parar aqui por alguns instantes e ver em pormenor esta proliferação de “Eus”. Até agora conseguimos criar com sucesso várias fracturas no Eu Verdadeiro e Original, a natureza de amor e ser completo com a qual todos nascemos, em três partes distintas:

1. O “Eu Perdido”, aquelas partes do nosso ser que reprimimos devido ás exigências da sociedade;

2. O “Eu Falso”, a fachada que construímos para poder preencher o vazio criado por esta repressão e por uma falta de afecto;

3. O “Eu Deserdado”, os aspectos negativos do Eu Falso que encontram reprovação no meio que nos envolve e que, assim sendo, são negados.

A única parte desta colagem complexa que mantemos consciente é aquela que faz parte da criança original e completa e que ainda se mantém intacta, assim como certos aspectos do Eu Falso. Estes aspectos juntos formam aquilo a que chamamos ‘personalidade’ – a forma como nos descrevemos aos outros. o Eu Deserdado, Perdido, encontra-se quase totalmente ausente da nossa consciência: cortamos quase na totalidade todas as ligações com estas partes reprimidas do nosso Eu. O Eu Deserdado, as partes negativas do Eu Falso, fica alojado muito próximo da consciência e ameaça constantemente vir à superfície. Para o manter escondido, temos que o negar activamente ou então projectá-lo em outros.

“Eu não sou egoísta! Tu é que só pensas em ti!” diremos veementemente. Ou “Eu, preguiçoso?! Tu é que não tens nunca tempo para desfrutar da vida!”

E dizemos isto com tanta energia quanta conseguimos utilizar.

E assim, a pouco e pouco, a criança original, completa e divina, começa o processo de separação e sofrimento. Eventualmente, por volta dos quarenta anos, começa a questionar os seus relacionamentos, o seu trabalho, a sua família. Sem que se aperceba que tudo à sua volta são projecções de si mesmo.

A única forma de, então, libertar-se de todo o sofrimento que sente e que também causa a outros, é através de um abraço. Um abraço com amor por quem é e por quem tem negado em si. Um abraço sentido a partir do coração. Só aqui começa o verdadeiro retorno a quem sempre foi.

Agora que começamos a estar mais conscientes das razões porque a nossa vida é como é, podemos fugir e continuar a fingir que a vida é complicada e difícil, ou podemos dar início a um processo de cura interior.

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